A Sonância Escarlate
Meu horror não tem rosto, tampouco forma ou, ainda, constituição. As sombras mais negrumes das sextas-feiras mais insólitas conduzem-me sempre à lembrança, ressuscitando aquele lôbrego som em minha mente atormentada. Estou fadada à loucura perene desde que deixei aquele lugar — o qual não me recordo ao certo os seus pormenores e, confesso, prefiro que tais reminiscências descansem em paz sob a mortalha do esquecimento, pois diante a condição atual qual me definho, todo olvidar é alívio. O que sei é vago sobre todo o âmbito daquele lugar amaldiçoado e mais ainda do ser, o mensageiro do diabo, que trouxera à luz da vida a composição terrífica do antro mais obscuro de todo o cosmo. Desde aquele dia, perdi minha voz… e não há doutor especialista capaz de identificar algum problema. Se ouso falar… tudo o que ouço é a música espargindo de minhas cordas vocais e penetrando meus órgãos como execráveis agulhas imanentes.
Havia um convite sincero, era para ser um dia especial… como pode haver tamanha desgraça no inócuo encontro de pessoas que se amam? Estávamos naquele bar, nosso entusiasmo era genuíno e emergia de nossas mais recentes conquistas, entretanto, por sorte — a sorte que eu não tive — Eric teve de atender a um telefonema urgente que o fizera deixar o bar pelos eternos segundos em que eu, sozinha, encontrei a hediondez da sonância macabra. Foi a última vez que Eric ouviu a minha voz na sutil expressão da paixão etérea; hoje o que me resta é a imortal prostração, embora eu tente, por amor, ainda sorrir. Sei que aos poucos estou sucumbindo, senão pela música que se repete indefinidamente por cada poro de minha pele, então pelos pesadelos diários culpados de minha insônia e das constantes paralisias oníricas — e como me dói ter de escrever a respeito disso… se estou aqui é tão somente pelo meu dever moral, tendo ciência de que devo alertar a todos sobre o que sei, prevenindo-os de sofrerem o que sofri e que sofro, mas que fique claro que eu não voltarei a redigir sobre o este assunto, eu estou cansada de fazer relatórios e mais relatórios sobre o pior momento de toda a minha existência para que, no final, façam da insanidade a única conclusão possível; este será o meu relatório completo e o único a ser entregue à todas as autoridades que precisarem de meu depoimento. Nunca mais trarei à tona este assunto e ainda que no futuro todos os inquéritos sejam retomados, apenas não me procurem! Tudo o que os senhores precisam se encontra aqui, somente aqui.
Tratava-se, portanto, de uma noite de jazz, com a exibição de um músico que, como Eric já vos deve ter dito, não lembramos do nome e tampouco da razão pela qual ele foi especialmente chamado a se apresentar. Tudo naquela sexta-feira foi incerta a partir do momento em que adentramos o insidioso local. Sua atmosfera era incomum, embora tentássemos não pensar a seu respeito, era evidente que algo estava errado… agora é mais que evidente… ah, se eu tivesse dado ouvidos à minha intuição, tudo poderia ter sido diferente. O lugar era potencialmente repulsivo, não pelas instalações, infraestrutura ou atendimento, mas pela aura. As lâmpadas tremeluziam com aspecto espectral sobre as mesas e pessoas de modo a potencializar uma atmosfera inominável; quando fiquei sozinha na mesa, tudo o que eu sentia era frio, mais e mais frio pelo sopro gélido que pairava no ambiente fechado, a cada segundo, conforme o horário da apresentação se aproximava.
O rosto do músico é indefinido, não sou capaz de descrever o homem, ou mulher, eu não sei, eu apenas fui subjugada de súbito por uma nota que se estendeu melancólica em timbres mórbidos inenarráveis. Foi tão célere quanto impactante, e eu lembro, numa perfeição incontestável, que todas as pessoas que apreciavam a noite naquele local horrífico desapareceram como fantasmas logo em que a música se alastrou e, no mesmo instante, a aura supracitada revelou-se integralmente quando uma névoa encarnada, de odor profundamente idêntico à sangue, veio à tona encobrindo meu corpo. O pavor me consumiu, e eu não tive forças para afastá-lo, pois que o momento insondável esconjurou a deplorável sensação de morte, decadência e danação em proporções insuportáveis. Foi nessa hora que minha garganta foi contorcida e a falta de ar culminou meu desespero, foi uma dor intolerável e tão peculiar como a música que prosseguia fúnebre e maldita tal como deve de ser o riso perverso de uma besta do abismo — a mesma besta que decerto fragmentara os ossos de todo o meu aparelho vocal ainda que a ciência insista em dizer que está tudo intacto!
Agora o que vem é o que menos será aceito pelo mundo, todo o horror que vivenciei por causa da cruciante sinfonia não durou mais que um segundo. O músico infernal? Era como se nunca tivesse pisado naquele palco e Eric insiste em dizer que o sujeito sequer se apresentou naquela noite. E as pessoas que vi desaparecem? Continuavam com seus jantares normalmente. E a névoa escarlate fétida como seiva fresca? Apenas inexistente. Tudo acabou — parecia ter acabado — e quando Eric voltou à mesa, me encontrou morrendo de dores lancinantes na cabeça, a dor era símil às mais agônicas enxaquecas e meus globos oculares latejavam, desolados no caos. Senti enjoos e torturas, as náuseas eram tantas que implorei, no sussurro mais confrangedor, para que fôssemos embora enquanto nada, absolutamente nenhuma lembrança da situação sobrenatural, residia em minha mente. A minha confusão mental naquela noite é assentida pelos sete psiquiatras que passei como responsável pelas “alucinações” ou “fantasias oníricas” que tive a posteriori, todavia eu sei muito bem que não se trata disso.
Pelos dias que se seguiram após a situação que eu sequer me lembrava, a bizarra sensação persecutória nasceu prematura, isto é, tão logo em que deixamos o bar; uma impressão impertinente e contínua; sua duração? Eterna. Ainda hoje sinto estar sendo observada quando me deito na cama para dormir, ou se cozinho com Eric pelas manhãs; não importa o dia, nem a hora, à minha visão paralela pertence as sombras encarnadas como a névoa daquela noite; e o cheiro de sangue sempre germina como uma asquerosa erva daninha, embora não seja pior do que a música, a obstinada canção que desde a saída do bar esteve em minha mente. Saibam que se trata de uma composição funesta, só pode ser, pois o que tem de esplendor, tem de dantesco! Ela contorna a minha psique com uma perfeição tétrica que me afoga em severa algia e, antes de perder a voz, eu a cantarolava de modo inconsciente a ponto de me oprimir aos dissabores mais pulsantes vindos de um umbroso confim que jamais saberemos onde é — aliás, é melhor que sequer investiguemos, pois que foi na busca por respostas que eu naufraguei minha alma na ínsula do desolador átimo esquecido.
As devotadas terapias causavam-me amargor, pois eu tinha de repetir sempre a mesma história, reclamar sempre das mesmas dores; e todos os meus psicólogos e psiquiatras pareciam unanimes sobre a necessidade de prosseguir com as consultas semanais; Eric sabia que eu estava exausta, o resultado que eu buscava estava apenas — e cada vez mais — distante. Dos médicos especializados em toda a fisiologia de meu corpo doente, eu já havia desistido, ninguém entendia as dores pungentes na cabeça, tampouco na garganta; para eles era somatização fundamentada em neurose e, com esta hipótese, terapia era o único caminho. Mesmo diante do meu infortúnio e fadiga exorbitante, aceitei ir a um último psiquiatra, o Dr. Frederico, este, por sua vez, se diferia dos demais, pois, trabalhava com hipnose. Graças a ele eu encontrei o que procurava. Meu alerta é contumaz e é evidente que as autoridades me reconhecerão — e reconhecem, convenhamos! — como doente mental, mas decerto que n’algum momento há de vir à tona uma curiosidade peculiar, alguém há de se sentir instigado a entender o que houve comigo. Digo, repito, tomem cuidado para onde vão, mas não insistam em demasia na empolgação da descoberta, pois que eu insisti e bastou uma única sessão para eu me lembrar de tudo, tudo o que já vos descrevi… e mais…
A música cantarolada todo esse tempo, que trazia meu declínio à angústia permanente, estava inacabada; porém na hipnose ela me veio em completude cruel além de todas as cenas daquela sexta-feira maldita. Sonante pelo inferno mais fascinante e horrendo, notas contínuas de um piano medonho causando nada mais além de constante exasperação e fobia. Minha garganta foi outra vez dilacerada ao ouvir a composição completa e meus olhos se cobriram pelo sangue que eu tanto sentira exalar. Dor, dor agonizante, abri meus olhos antes mesmo de sair do transe e de uma forma assustadora eu vi o Dr. Frederico com um espectro rubro, ele era nada além de névoa fantasmagórica, escarlate, com deformidade cadavérica e a sua nitidez, enquanto toda a sinfonia da loucura, o jazz da minha inabalável ruína, clamava, ensurdecedor, aos meus tímpanos; é palpável para mim, cada cena, todas as vezes em que adormeço. Diante do manto medonho que cobriu minhas retinas naquele momento, lembro-me de cair sobre o chão na lentidão mais avassaladora, dominada pela atmosfera de violenta abominação, e que chorei o sangue das notas macabras e que, também, perdi a minha voz para sempre.
Os senhores jamais entenderão o que é perder a voz para sempre, ainda mais quando se sente, dia após dia, noite após noite, que seu pescoço é envolvido pelas mãos malignas de uma criatura translúcida e cetrina que aperta, oprime e esmaga sua traqueia a cada piscar de seus olhos insones… e mais do que isso, até hoje o jazz melancólico me causa crises de pânico e, numa dessas mordazes crises eu tive uma considerável perda de audição — e essa é a única prova palpável que os senhores terão de mim, a prova que traz à tona a veracidade deste relato, por mais que vocês insistam em desconsiderá-lo. Está tudo anexado a este documento e trilhões de cópias já foram criadas e direcionadas a investigadores, policiais e outros tantos profissionais — e todos os laudos das constantes perdas de audição que me vêm ocorrendo desde a sessão de hipnose estão assinadas por diversos doutores especialistas na área que poderão, e hão de sempre o fazer, confirmar cada exame, cada vídeo e cada relatório técnico que afirma, confirma e explica, que meus tímpanos sofrem da mais estranha anomalia, pois vibram, vibram como se estivessem continuamente expostos a algum tipo de ruído excessivamente estrondoso… de caráter alarmante… vinte e quatro horas por dia… Enganam-se, contudo, se tomarem para si a ideia de que o jazz do espectro encarnado está diminuindo também diante a minha perda de audição; não, a música maldita permanece ensurdecedora e ela nunca… nunca termina.