Uma Imensidão
Era manhã, mas, parecia entardecer. As nuvens estavam densas e pálidas, carregadas de uma chuva-talvez. O vento dançava as árvores e folhas ao sabor da primavera, enquanto o sol quente tardava na imensidão; ele trazia, assim, uma calidez singular, soprava com um perfume próprio, não havia como assimilá-lo, é como a tranquilidade do oceano sob o pôr-do-sol; ou a chuva calma e contínua escurecendo o meio-dia; é a infância, sob os cobertores brancos, os olhos atentos ao desenho animado e o leite amornado com aveia. Parecia o som de um piano sereno ou a ausência de gravidade; uma manhã que fazia ser manhã por dentro, aconchegante, com meia nos pés e pensamento longínquo. É uma raridade, as clareiras do céu desvelando-se para brincar com a brisa em seu canto de silêncio. Foi assim, manhã, até o verdadeiro lusco-fusco; e a noite beijou o vazio por completo; sem vento, sem luz, sem sentido.
Eu percebi. Diversas vezes eu percebi. A exatidão do tempo. Sutil como uma pétala perdida ao desprender-se de uma margarida no topo de um arranha-céu — ninguém nota, mesmo que sua graciosidade chegue ao chão ou que se desvie para uma janela vizinha. É apenas uma pétala. É apenas uma pétala? Parece-me como o céu ser tão somente o céu, a chuva apenas a chuva — apenas, apenas? É como se fosse pouco, mas não é. Nunca será. Rege a existência cada sinônimo de sutileza, dos grãos ao orvalho; e o cântico dos pássaros pela madrugada vazia, banhada pelos sonhos do mundo humano, mundo daqueles que não se lembram de sonhar quando outro ciclo se inicia brindando a natureza das coisas como são. Eu me encontro nas coisas como são. Em como eu me sou. No entanto, cada alguém é uma ilha que, mesmo explorada, esconderá eternamente um mil segredos.
Não choveu naquela manhã, nunca foi uma promessa das nuvens que as lágrimas de seu interior embriagassem os lares, embora ao que cabe meu coração, meu lar de mim, chove até agora e ainda sopra o vento na mesma velocidade com o eflúvio da primavera vibrante em minha memória. É que a noite respira de outra forma, se antes acalmei as emoções pela razão da consciência da tenuidade de tudo, agora, à glória da madrugada-quietude, estou para o questionamento como a Lua está para a Terra — sou uma escrivaninha do quarto à meia-luz, sou a poesia de ser-me humana e da humana que fui; tudo o que aprendi, nas escolhas e nos risos e nas outras noites tantas em que a indagação dormiu ao meu lado — nas outras manhãs que pareciam entardecer. A companhia da introspecção, essa fleuma e essa verve, a vontade e a necessidade; um abraço e um tempo de apenas olhar, de apenas tocar — a introspecção do universo inteiro no pequeno imo desta que escreve pelos segundo de cada gota da chuva nunca prometida.
É peculiar que agora as letras se embacem como vidros de janelas fechadas, talvez por causa das janelas da alma que umedecem em cada íris — e costumam irrigar travesseiros. E não que me seja assim tão estranho, é que os anos se passam e nem todas as manhãs são a nostalgia do entardecer; eu apenas envelheço em certos cotidianos de todo-o-sempre e tudo passa e passa… pessoas passam… rasas e singelas — beijam o abismo que sempre preservamos entre nós, mesmo quando amamos tanto. O amor que me trouxe, se houver alguém ou algo que queira saber, ele é a razão, o amor — não o puro e imaculado, mas aquele que insiste apenas porque lhe traz uma raiz de sentido, um norte acolhedor. E eu sei que tudo era sobre o tempo ou sobre aquela manhã; contudo, se todas as palavras se unirem como a vida se une à morte e a morte à vida, elas se tornariam apenas uma imensidão — uma minha imensidão.