Aesir
Uma lânguida tristura penetrou-me o âmago e minhas lágrimas nasceram como orvalho da manhã. Eu estava preenchida pelo vazio de modo que toda a extensão abíssica que o comporta fazia completo sentido em minha alma. E aquele ser continuava a olhar-me com seu lúrido semblante tumular. Eu soube, pouco antes, das consequências quais se desvelavam naquele atormentador momento, no entanto custei a acreditar até vivenciá-los, pois que qualquer sã criatura hesitaria assim como eu hesitei e, decerto, na mais pura consciência, qualquer um desconfiaria de sua própria sanidade tal como eu desconfiei no prelúdio de todas as coisas. Mas ali, sendo fitada profundamente por aquelas órbitas solitárias, já não cabia em meu peito quaisquer desconfianças, restava tão somente o vínculo ao desalento.
Devo dizer que ainda não manejo as palavras tal como sei que o farei nas próximas décadas; no entanto há sede e vazio, e as palavras possuem a razão elementar que me permite lembrar o sentido etéreo de minha escolha. A minha escolha; aquela que, por Amor, resistiu a todo o sangue e toda a agonia. Fui guiada por minha intuição desde que Aesir pousara em um dos balaústres, na varanda. Era três horas da manhã. O vi majestoso, de soslaio, imediatamente levantei-me para contemplá-lo de perto. Tratava-se de um pássaro corvino cujas penas possuíam tons violáceos, embora, predominantemente, negros. Seus olhos também eram púrpura e detinham uma reluzente constituição símil às chamas de um tipo de fogo obscuro e cósmico. Fitei-o através da porta, pelo vidro. Tive receio, por segundos, diante a magnitude da ave.
“Olá” — sussurrei ao abrir a porta, um sopro taciturno adentrou a fresta e invadiu-me o corpo como se fosse uma aura — e de fato era, mas eu não sabia. Senti frio e angústia, abracei meus braços em busca de calidez e mirei os detalhes da criatura à minha frente. O pássaro era mais belo do que previsto, suas penas possuíam ornamentos reluzentes em um tipo de cor metálica-violeta e o bico era negro, de ponta afilada, perigosa e, talvez, fatal. Sentei-me à porta após buscar, devagar, a cadeira da escrivaninha. A porta de vidro permaneceu semiaberta, pois diante os detalhes que apreendi, temi um pouco mais, temi que seu acúleo penetrasse meu órgão vital, deste modo não deixei que o espaço fosse suficientemente vasto para que ele pudesse entrar. Era tão belo, tão estranhamente melancólico, não quis deixar de fitá-lo mesmo temerosa.
“De onde é essa ave?” — pensei. “Parece um tipo de criatura dos sonhos, fantástica, irreal”. A ave parecia serena, seus movimentos eram tão venustos quanto sua aparência. “Agora não estou tão só” — proferi à ave. “Aqui, às vezes, é solitário; não é como se a solidão me perturbasse, mas você, como uma ave solitária tal como me parece ser, entende que, às vezes, faz falta…” — eu disse. Não há razões para eu ter começado um diálogo com aquela criatura, tratava-se de um pássaro, um tanto místico, eu sei, mas ainda assim era um pássaro; eu de fato sentia a solidão e a falta, a ausência corria em meus pulmões e, por vezes, devorava minha energia. Eu recebia visitas semanais e mensais de alguns familiares e amigos, nutríamos uma relação amistosa; ainda assim eu apenas não pertencia. Não havia encaixe e conforto ao lado daqueles quais me criaram e me educaram durante tantos anos; muito menos daqueles quais conheci no decorrer de meu amadurecimento. Todos eram estranhos e eu me sentia, a cada anfemeridade, mais alheia e indiferente e todos eles.
Meu adorável pai com seu austero semblante, era fraco; tão fraco. Seus traumas o faziam, tão somente, um homem comum cuja autoestima se imergia na ilusão de unicidade; minha mãe, tão amável, imersa em fantasmas cujos horrores a faziam morrer em si mesma, dia após dia. Ambos viam-me como um espelho, transformavam-me em si mesmos e, cada palavra a meu respeito que eu lhes direcionava, voltava para mim como sendo propriedade deles, acerca deles, nunca de mim. E o que posso falar sobre meus irmãos e tios e tias e avós? Todos são como fiéis carvalhos, enraizados no pântano de seus entraves e quimeras. Não se diferem de meus colegas e amigos, os quais vivem sedentos de compensação da vida adulta medíocre que são obrigados a levar. “Devo escolher um nome para você, não é?” — falei ao pássaro após um mergulho prolongado em meus reclusos pensamentos. “É isso que fazem os humanos, nomeiam os entes do mundo, coisas e criaturas” — expliquei e suspirei pela atmosfera ainda tão consternada. “Aesir…” — revelei. “É um nome com sonoridade interessante, não acha?” — mais um suspiro. “É isso… Aesir… Este será o seu nome agora”. Levantei-me. “Aesir, eu estou triste como nunca estivera, não poderei lhe fazer companhia. Logo amanhecerá.” — Fui à minha cama e me deitei. “Dizem que o amanhecer traz sempre um recomeço”. Antes de adormecer, lembro-me de ter visto Aesir voar.
Não era como avistar uma belíssima Arara azul ou, ainda, Tucanos ou Flamingos; Aesir era um pássaro obscuro, olhá-lo não trazia somente encanto de modo a ser, a primeira reação do observador, fotografá-lo ou, ainda, na pior das hipóteses, prendê-lo numa espécie de gaiola. Aesir trazia o encanto rubro cujas sensações de fascinação, infelicidade e vazio uniam-se através da morte em uma dança íntima e soturna. Fitá-lo era, tão somente, profundo desejo de fitá-lo e nada mais além das sensações deste etéreo contemplar. Apesar da estável veracidade daquele noturno encontro, ao despertar na manhã seguinte deduzi se tratar de um sonho lúcido e que a mística criatura nascera meramente das nódoas mentais de meu inconsciente ressentido.