O Prelúdio da Loucura

Nicola Samorì - L’oro galleggia (2011)

Havia algo naquela noite, algo cuja fixação no antro do inconsciente é mais poderosa do que quaisquer traumas envolvidos pela imaginação fértil da infância. Eu não posso esquecer e por isso escrevo, existe no meu ser uma necessidade incomensurável de escrever as minhas agônicas memórias e, à posterioridade, deixo este relato como uma lembrança de que nem tudo é o que parece ser.

Foi de súbito que o horror nasceu com o vento soprando em ódio a sua sonância terrífica; trovões ressoaram em átimos subsequentes com clarões de absurdo fragor no mesmo instante em que a porta da sala-de-estar se abriu impetuosa, possuída de uma fúria ancestral, rangendo e batendo contra a parede. A lufada adentrou tão semelhante a uma onda de torrentes instáveis e eu pensei que só podia ser o prelúdio de uma tempestade agressiva — digna de tufões. O medo me tomou num único gole e, apavorada, fixei meu âmago no assobio tétrico que tão logo invadiu-me os tímpanos. Meu coração se cercou na arritmia, pois não se tratava de um assobio comum como qualquer outro vento proporciona ao encontrar uma fresta; não, era o silvo mais horrendo que já ouvi e embora tenha sido captado pelo sentido da audição, o maldito me penetrou a espinha dorsal e contornou-a gelando até meu peito. Meus braços e pernas pruriram e eu hesitei em olhar para a janela.

Quando fitei meu gato, inquieto, saindo do sofá e seguindo para o cômodo ao lado, tive certeza de que algo acontecia, minha intuição, contudo, conturbada pelo alarme, nada me revelava, seu intuito era me proteger e eu estava anestesiada pela tensão. Caminhei até a porta, oscilando, imaginando que a trancaria após verificar o clima. Assim o fiz, apesar da dificuldade contra o vento continuamente perverso. Olhei para fora e a rua estava negra como um pântano sombrio cuja proteção de suas entranhas guarda o segredo de uma gruta úmida e rançosa; as luzes estavam tenras como a prever a abominação e eu nunca que vi os pinheiros tão enlouquecidos pelas contínuas rajadas e nem os céus naquele negrume tão profundo; seria mesmo real? Segurei a maçaneta, investi contra o fluxo; o assobio outra vez. Estremeci como um pobre cão abandonado ainda na tentativa de fechar da porta, mas parecia impossível, pois mais e mais forte era aquele pulmão inabalável.

— Céus! O que é isso?  —  proferi na fuga de um alívio, era como se, ao ouvir minha própria voz, estivesse garantido a força da minha sanidade, assim como a realidade tangível e a segurança da vida mediana. Pobre de mim, mal a indagação retórica se concluía e o assobio, juro pelos deuses todos que já foram criados nesta humanidade desde os mais primórdios tempos, o assobio agudo e perverso vociferara: “Eu sou!”. Delírio? Delírio! Movimentei a minha cabeça e meu corpo pesou como chumbo, senti tão instável o chão sob meus pés e, atordoada, emergiu-me a necessidade impulsiva, agreste, como uma gana intrincada, de provar a mim mesma de que a realidade era ainda digna da significação do termo qual lhe designa. Mirei à minha volta, soou-me duas horas de contemplação e busca, mas foram segundos, segundos depois de ouvir o demônio sibilar! Lancei contra a porta de madeira meu corpo pálido e frígido como um cadáver e, decerto, meu espírito maciço pelo horror agregara a força precisa para conseguir fechá-la. O maldito portal do inferno estava trancado! Eu, tão ofegante, caminhei à janela, completamente inebriada por uma coragem que nunca mais senti, certa e resoluta sobre fechar, definitivamente, o umbral de assobios execráveis.

Estava lá, a fresta que basta para hipnotizar; ser algum é capaz de tomar ciência das similaridades entre o trivial e o terrífico; tampouco apreender com clareza que somente na trivialidade o terrífico se desvela, até que o temor incontrolável lhe penetre como a fina agulha de uma seringa  —  arauto da vida e da morte. Aquela fresta era trivial, mas eu estava envenenada pela doença do hediondo na catarse íntima, silenciosa e pungente, por isso, mesmo quando a fissura se fechou por minhas trépidas mãos, não senti alívio; algo ainda residia na atmosfera, eu não sabia, entretanto, se advinha do nefasto pronunciar  —  o silvo do vento cruel —  e da sensação de sua magnitude fúnebre, ou se d'outra cousa que meus olhos não podiam enxergar. Repousei sobre o sofá enquanto morria nas indagações de meu ser, todavia, meus olhos, ai de mim, meus olhos que não podiam enxergar o horror que pairava, finalmente eles puderam me ser úteis, eu vi o meu amável felino sobre a mesa da sala de jantar e ele não estava feliz, na verdade, sua face era de medo e seus olhos de gato noturno fitavam arregalados, e com finíssimas pupilas, a fresta… a fresta da janela da sala de jantar.

Antes que eu pudesse correr, o assobio bradou suas maldições mais alto do que outrora e o gato correu para longe, assustado; minhas forças nitidamente se esvaíram, tamanho era o pânico! e eu não conseguia caminhar enquanto aquele agudo ascendia e o vento soprava e a fechadura estalava deflagrando-se como um arrombamento premeditado de uma criatura monstruosa. A porta da sala-de-estar, o portal do inferno, de novo escancarado, pois que na rufada maligna não habita a clemência. Mais temor, mais vento, aquilo não podia ser uma simples intempérie! Não podia ser tão somente um vendaval! A coisa que assoprava tinha alma, consciência e voz.

— Deixe-me em paz! —  Meu urro veio da essência de meu núcleo humano; meus passos já não podiam continuar e o sibilo cada vez mais ensurdecedor. — Deixe-me em paz! —cada vez mais estrondoso. Amedrontada, chorei cachoeiras do desespero genuíno, mas quando abri meus olhos, vi as lágrimas flutuando ao redor como se não houvesse em grau algum o peso da gravidade. Meu peito tornou-se um cubículo d'onde pouco ou quase nenhum oxigênio se abrigava, que aflição! Inominável aflição! Olhei para o líquido guiado ao vento macabro e notei que nada, nada se movia, era apenas surreal, nada além de meus cabelos e tudo o que havia em mim estava no caos daquele místico infortúnio; nada além de minha ínfima existência se afetava em horror. Os livros estavam estáticos, os papéis sequer vibravam, os casacos pendurados naquele velho cabideiro de eucalipto estavam inertes, estranhamente, inertes; nem as lágrimas tinham noção de seu dever em cair sobre o chão miserável.

Assim, estupefata, me curvei lentamente e, de soslaio, atentei para a sala-de-jantar buscando o que assombrara o pobre felino que era, pois, o único além de mim que poderia comprovar aquela  — sem dúvida paranormal — extravagância. E estava lá, estava mesmo lá, na frincha ordinária, na trivial fresta tão símil àquela qual, há poucos segundos, eu fechara. Era um ser diabólico... vívido através do vidro como uma colossal monstruosidade espiral cuja mente humana sequer pode assimilar. A forma do vento atemorizador, o semblante esguio e atroz do sobre-humano sopro claustrofóbico. Era como uma serpente com membranas no contorno de seu corpo possibilitando-o de voar como uma ave amaldiçoada; tinha padrões de orifícios quais vibravam, vibravam impetuosos ao som do assovio hediondo! E mais, tanto mais, aquela coisa nunca deixou a minha memória! Pelo contrário, fez de minha memória o seu recôndito infernal, para sempre! Empalideci diante dela e eu sei que eu estava branca como névoa, pois tamanho era o meu pavor diante daquilo e eu me arrastei pelo chão até chegar à porta de entrada escancarada sem conseguir tirar meus olhos daquela coisa. Ela estava parada e seu único olho negrume parecia me fitar o núcleo de minha constituição. Ela continuava a assobiar e num único piscar de olhos, após um árduo lacrimejar, a criatura sumiu.

Levantei-me com esforço e corri numa lentidão inimaginável, pois o vento não me permitia sair para fora de casa, ele me afastava à janela e a coisa, agora invisível, contornava meu desespero. O Assobio estava tão perto, era um sussurro em meu cérebro. Jamais serei capaz de descrever a sua composição, até hoje acreditam que eu estava sob o efeito do ópio — o qual jamais fora encontrado, nem em meu corpo, nem em minha casa! Céticos condenados! Não sabem com o que estão lidando! A sensação que perdura, desde então, em mim, é de que a criatura inenarrável não era um fenômeno da ufologia moderno, tampouco um acontecimento cuja explicação está no esoterismo; a coisa dominava a natureza terrestre e manipulava a realidade de modo que, quando eu consegui escapar às ruas negras, percebi que naquela hora nem os pinheiros se moviam e tudo o que pude fazer foi gritar, mais alto que o assobio infernal, tendo ainda meu corpo empurrado pelo mefistofélico vendaval. Bradei na mais profunda amargura e meus tios, residentes da casa vizinha, apareceram. Tudo se extinguiu quando eu os vi e disseram-me, depois, que desmaiei como se estivesse morto, minha pulsação era quase nula e afirmaram-me que tive, a caminho do hospital, lapsos de consciência onde eu gritava, em grave exasperação, as seguintes palavras desconexas: “retorno” e “devoção”.

Sara Melissa de Azevedo

Diga-me, apreciaste esta obra? Conta-me nos comentários abaixo ou escreva-me, será fascinante poder saber mais detalhes da tua apreciação. Eu criei esta obra com profundo e inestimável amor, portanto, obrigada por valorizá-la com tua leitura atenta e inestimável. Meu nome é Sara Melissa de Azevedo. Sou Escritora, Poetisa e Sonurista. Formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial. Sou a Anfitriã dos projetos literários Castelo Drácula e Lasciven. Autora dos livros “Sete Abismos” e “Sonetos Múrmuros”. SAIBA MAIS

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