A Felicidade e a Razão
O pensar racional aplicado à quotidianidade resulta na felicidade em seu estado original, pois que, embora seja profundamente invocada pela sociedade, a felicidade não é a euforia contínua, tampouco a graça do prazer eterno, muito menos o sorriso estampado na face; a felicidade é genuinamente um estado-de-ser, onde há equilíbrio emocional e consciência racional, de modo que o prazer é sentido com sobriedade e o desprazer compreendido com facilidade. Não há como ofuscar a obscuridade da existência, ainda que se viva debaixo de crenças acolhedoras; até certo ponto há acolhimento, a posteriori o encarar da natureza é preciso, o enxergar de sua constituição completa é vital — não para deixar-se abater, perdendo o controle das emoções e, consequentemente, minimizando a racionalidade que nos é tão própria; olhar para o abismo é puramente olhar para a nascente de tudo aquilo que há e que é; olhar, sentir e compreender, tudo no equilíbrio racional e na admiração emocional que nisto se cabe.
O des-velar é necessariamente o despreocupar-se com a mundanidade, e isso advém do racionalizar da existência em sua constituição própria. A quotidianidade não é culpada pelo afogamento do nosso ser e, consequentemente, das consequências devastadoras desse afogamento. O quotidiano é o que é, a natureza faz o que faz, as pessoas são o que são e somente o Ser-si-mesmo é capaz de modificar a realidade que o faz — e somente ele e somente a realidade que o faz, dado que a realidade como um todo não é modificada, as plantas continuarão sendo plantas e a vida humana continuará sendo desprovida de sentidos pré-determinados. No des-velar, portanto, reside a felicidade em seu estado original; pois o des-velar só se apresenta à medida em que nos dispomos à racionalidade — no exercício constante dela — em todas as instâncias da vida. Por fim, enquanto mundanidade, entende-se tudo aquilo encobre o exercício constante da Razão, onde o pensar é sufocado pela emoção desequilibrada sob sentidos extravagantes — a inconsciente do Ser-si-mesmo, a ignorância da existência, estas são as pragas que englobam tudo o que ofusca a Razão.
Entendendo que a Felicidade é o estado em que dispomos nosso Ser-si-mesmo a partir do exercício da Razão, compreendemos, portanto, que a Razão nos leva à compreensão plena e constante do mundo em sua mundanidade e, a partir disso, aceitamos nosso caráter de agente da — e apenas da — nossa própria existência individual. Quaisquer mudanças que fazemos no mundo humano — que achamos que fazemos — se trata tão somente do caráter de agende das pessoas que, pela razão, foram capazes de enxergar aquilo que você transmutava em si mesmo e, a partir disso, conseguiu-se abrir mais uma clareira na escuridão da ignorância. O exercício da Razão, pelo pensar, é o único capaz de desafogar o ser da ignorância; por isso não adianta tentar mudar os outros, é completamente antirracional desejar ser o “exemplo” aos demais, deve-se ser a si mesmo a partir do exercício constante da Razão, qualquer um que se afete positivamente por isso deve carregar o mérito de ter-se afetado positivamente pela mudança alheia, pois, se foi afetado, é porque exerceu a Razão. Em suma, não é mérito seu ser um “exemplo” às pessoas, é mérito das pessoas fazer você de “exemplo” — isto é, de serem capazes de, pelo exercício da Razão, entenderem uma nova perspectiva de vida a partir da observação e da compreensão; não é sobre copiar cegamente o modo-de-ser do outro.
Se é aí que a felicidade original faz morada e se é, ela mesma, um estado que nem sempre está vinculada ao prazer, então por que querer a felicidade original? Talvez seja mais interessante a euforia que é, pois, uma emoção de contentamento completamente descontrolada. A resposta desta indagação encontra-se somente no exercício da Razão que o Ser-si-mesmo precisa aprender a realizar, no entanto, o registro desta resposta também tem grande valor e aqui será redigida. Qualquer emoção descontrolada carregará consigo o descontrole das ações do indivíduo — descontrolar-se em seu comportamento trará consequências quais você não tem nenhum controle e absolutamente nenhuma previsão; qualquer emoção exagerada de contentamento terá um fim súbito de modo a gerar o efeito contrário daquilo que se sentia, isto é, um ciclo vicioso para o corpo em sua totalidade; qualquer emoção exagerada não está vinculada com a Razão, por isso não enxerga a realidade tal como ela é e, portanto, não coincide com a vida em si mesma — é antivida.
A Felicidade original é o estado de compreensão plena de cada situação que nos dispõe à certa emoção. Se estamos felizes, aproveitamos conscientemente desta alegria; se somos abraçados pela tristeza, somos capazes de compreender a sua origem e o porquê ela está ali, isso nos permite sentir se for preciso sentir ou deixar de sentir se ela simplesmente não tiver razão para estar ali. Ambos os casos são manifestações da Felicidade Original que só existe no exercício constante da Razão. Um exemplo evidente: Sente-se triste porque chove e não se pode sair de casa de modo confortável, essa tristeza é irracional, a chuva continuará caindo mesmo que você esteja triste e só quem se incomoda e perde tempo é você. A natureza é como é. Se você toma a decisão de ficar em casa, não há mais por que ficar triste, você já tomou a decisão e pronto. Se você ficar remoendo a chuva que cai, você estará consumindo a si mesmo e isso é irracional, pelo exercício da Razão compreendemos que consumir-se a si mesmo é antivida e imoral, não há nenhuma razão para que o ato de se consumir a si mesmo seja plausível. Por outro lado, se pelo exercício da Razão você entende que sua tristeza está enraizada em uma perda, um luto por alguém que lhe era importante e que se foi, tomar a decisão de deixar-se chorar e sentir é o mais racional a fazer, uma vez que quando amamos alguém e a perdemos, isso é de grande dor para nosso ser, devemos encarar esta dor, sentir, chorar e aprender com ela — e isso é a felicidade original. Quando não encaramos uma dor profunda, engolindo nosso choro e abafando nossa tristeza, transformamos a dor em trauma e o trauma nos consome.
O exercício da Razão, repito, deve ser constante; assim, mesmo sentindo profundamente alguma emoção, ainda sim estamos pensando, ainda assim somos capazes de ter consciência de nossas ações e da realidade tal como ela é.