Backrooms — espaços liminares
Eu estive em um labirinto liminar. Compreendo, por experiência própria, as suas obscuras entranhas. Eu também conheci pessoas que conseguiram escapar, mas, infelizmente, estes indivíduos não estão lúcidos o suficiente para que eu possa considerar, em completude, as suas narrações. Encontrei-os por meio de um amigo Psiquiatra que comentara a respeito das constantes crises de seus internatos. Imediatamente reconheci do que se tratava, mas nada mencionei; insisti, com a desculpa de estar pensando em escrever um livro a respeito, para ouvir dos próprios sujeitos o que condenava suas almas e mentes. Consegui muito material com isso, mas em determinado ponto percebi que, talvez, todo o bruto relato dessas pessoas estivesse cheio de ilusões criadas pelo trauma e por seus mecanismos mentais de defesa — o que invalidava muitas “verdades” mencionadas.
Não é fácil escapar dos labirintos, não é possível viver com tranquilidade após encontrar uma saída, então eu os compreendo. Acredito que a razão pela qual consegui manter minha sanidade foi por acreditar profundamente que se tratava de um sonho e que, portanto, eu despertaria em breve. Eu compreendia a extensão daquela realidade, mas me recusava a levá-la em consideração. Você deve entender, o local era absurdamente desesperador, não é como se eu pudesse simplesmente lidar com o fato de que caí de súbito numa realidade paralela. Insisti até o fim, insisti mesmo quando eu sangrava, que aquilo tudo era um colapso onírico de um corpo talvez em coma ou em algum tipo de delírio mórbido do sono.
Cair nos labirintos é, literalmente, cair; os portais estão sempre na queda; subitamente você tropeça em alguma coisa ou pisa em falso e, então, a queda parece estranhamente maior do que deveria; na sua visão conturbada você não consegue entender e tampouco tem tempo para quaisquer conjecturas, um segundo é suficiente, você se percebe com o corpo todo dolorido, largado no meio de uma sala vazia com cheiro de carpete úmido. É assim que acontece. Depois de bastante análise entendi que encontramos os labirintos quando caímos porque eles são, essencialmente, um erro, ou melhor, um glitch. É mais do que óbvio que vivemos em um sistema, pode ser um sistema compreendido a partir de termos diferentes das tecnologias que criamos, mas, ainda assim, é um sistema. Coincidentemente o universo é feito de matéria escura, tal como a tela de programação de um computador, tal como o lugar em que estão os códigos por detrás da interface do usuário.
O glitch acontece, nós somos os afetados; a pergunta que fica é: por que alguém criaria um lugar como aquele? Alguém o criou? Qual é o intuito de uma realidade paralela tão similar às construções humanas, mas que aleatoriamente se faz por labirintos tão somente para perturbar as pessoas que, por uma falha no sistema, caem dentro do primeiro nível? Sim, o primeiro nível são os escritórios, infinitas salas de escritórios ligadas por dezenas de corredores e outras salas com a mesma monótona aparência, por isso são labirintos, você não consegue distinguir as salas, todas possuem o mesmo papel de parede amarelado e sujo, as mesmas luzes fluorescentes. Vez ou outra eu encontrava computadores antigos, desligados, escrivaninhas e cadeiras; armários e estantes símeis àqueles de almoxarifado de arquivos. Encontrei até mesmo um ventilador ligado – sim, funcionando – em uma tomada, simplesmente assim, como se alguém o tivesse deixado ali há pouco tempo.
Tento me concentrar neste relato, porém uma fraqueza emerge sempre, é como estar lá novamente, é como sentir aquele silêncio em meio ao zumbido das lâmpadas enquanto me sufoco na angústia de um talvez; ninguém estava lá, compreende? Ao mesmo tempo havia alguém, alguém que fugia, que buscava uma saída, mas não se tratava de mim. A sensação era essa, de estar perto, porque tudo o que estava ali parecia ter sido abandonado há segundos, um átimo de segundo antes de eu chegar. Por isso tamanha é minha dor quando me recordo, tão vívida memória maldita. Lembro-me de estar a cada segundo sob a perspectiva de que a saída se aproximava, eu andava por horas, se é que havia tempo naquele inferno, por isso a exasperação me consumia, era como ter um sapo na garganta, eu não respirava direito, uma aflição inominável escorria no meu corpo junto ao suor. Eu estava chegando perto da saída, mas ela nunca surgia aos meus olhos. Passos e mais passos. Um móvel à mais, um pilar em outra posição, cada detalhe diferente me dava a esperança necessária para continuar.
Estou descrevendo minhas conclusões aqui, estou dizendo que tudo acontece por causa do glitch e que os labirintos são um espelho aleatório da realidade, um espelho criado pelo sistema central que, ao que tudo indica, o fazia de backup da interface do usuário até o momento em que, por um erro grotesco no código, o backup se transformou em uma geração infinita e aleatória dos mesmos cenários da interface; e o erro está num código bem específico, está nas construções humanas e não na natureza; não há um labirinto de florestas ou jardins, são sempre espaços humanos, isto é, casas, shoppings, prédios, estacionamentos... eu sei... eu sei que estou sendo hermética... peço desculpas por usar termos tão técnicos, isso me distrai das sensações persecutórias e ambíguas que fazem minhas mãos tremerem e minha visão turvar... aquele lugar é meu pior pesadelo, talvez seja questão de tempo para que eu me torne louca o suficiente para ser internada no hospício junto com aqueles que considero insanos demais para levar em consideração.
A minha queda foi na escada; eu estava descendo pela saída de emergência de meu prédio quando me acidentei. O ambiente estava um pouco mais penumbral do que deveria, visto que aguava uma intensa tempestade lá fora, a mesma culpada pela queda de energia do prédio – uma sequência de infortúnios tornou inviável o uso dos elevadores, ninguém se arriscava quando o céu desabava daquela forma, mesmo sob a segurança dos geradores do edifício. Eu devia ter identificado que algo não me parecia certo naquela noite, isso porque pouco antes de vestir meus sapatos e aceitar que eu seria obrigada a sair naquele tempo insalubre, uma pequena faísca de intuição soprou um infinitesimal alerta. Isso me faz concluir que os glitches podem ser perceptíveis, porque mesmo que não dominemos o código do sistema da vida, estamos ligados a ele e, portanto, reconhecemos as suas oscilações. Além disso, apreendo que, não só a aleatoriedade dos níveis labirínticos, o lugar em que os glitches ocorrerão também é aleatório; no entanto, posso estar errada, afinal, houve uma intuição e eu não sei se ela sabia apenas da minha queda ou se sabia do glitch em si. Como previsto, não dei atenção aos questionamentos intrínsecos. Foi a terceira vez que eu caía no mesmo lugar, tudo por causa de uma maldita noção arquitetônica péssima que deixou alguns centímetros de diferença entre um degrau e outro.
Depois de cair pela segunda vez, eu prestava excessiva atenção ao usar as escadas de emergência, todavia, o ínfimo alerta da consciência me deixou tão perturbada e desnorteada que não pude me defender, sem contar a chuva que caía e alagava São Paulo inteira fazendo um alarde horroroso. Sinceramente, não tive culpa, aquele glitch ia me pegar de qualquer jeito. Eu tinha certeza, durante o acontecido, que não havia como evitar aquilo, as dúvidas acerca da aleatoriedade dos glitches não são em vão, como dá para notar. Desci as escadas com estranha pressa e tropecei do quinto degrau antes de chegar no térreo; no entanto um violento silêncio nasceu, não havia mais chuva por poucos segundos até o som de objetos caindo em um lugar com eco se disseminar aos meus sentidos. Caí de costas, a primeira coisa que notei foi a lâmpada fluorescente no teto; minha visão estava embaçada e meu corpo doía, mas não o suficiente para me deixar inerte. Levantei-me e lá estava eu em uma sala de um escritório aleatório; o cenário que já descrevi. Comecei a andar porque não havia outra opção.
Eu assobiava, batia nas paredes, fazia todo o tipo de som de alerta; eu já disse que a sensação de estar quase perto de alguém era como um ninho no peito, isto é, uma esperança ou lembrança de encontrar um rosto humano que pudesse me explicar o que estava acontecendo. Tudo era insuficiente. Conforme eu andava, vez ou outra eu ouvia uma porta se fechar; às vezes eram passos... Às vezes eu era tomada por um medo estranho, um arrepio frígido que amargurava meu peito a ponto de me fazer parar e tocar meu tórax como um reflexo de sobrevivência.
Em determinado momento eu percebi que a sensação de estar tão perto de alguém, infelizmente, não era um delírio. Havia mesmo alguém..., ou melhor, havia algo. Algo inumano sabia que eu estava ali desde o princípio e eu soube disso porque eu vi o seu rastro. Não eram passos. Era um rastro de fios negros que, quando observei, percebi haver algo se mexendo em sua composição, como vermes em uma carne pútrida. Os fios eram fétidos e pouco antes de vê-los, comecei a sentir o mesmo medo estranho de outrora, porém, incorporado a um extremo pavor diante uma sensação genuína de perigo; quando de fato vi o rastro, eu suava de temor e meu desespero era profundo como abismo, não sei como descrever, eu estava enlouquecida, olhando para todos os lados, andando com passos de tartaruga para não ser ouvida. Eu sabia que havia perigo naquela coisa.
Minha intuição outra vez gritava na sua infinitesimal manifestação, mas naquele momento eu a ouvi. Aquele negócio, aos poucos, evaporava como água, sumia, não era um rastro eterno. Comecei a me afastar devagar. Era impossível, mas eu não estava descrente o suficiente para seguir o rastro. Numa súbita angústia, corri para o lado oposto; corri o mais rápido que pude e na minha desolação afobada, coberta pelo pânico mais atroz, eu caí outra vez, pelas pernas que vacilaram enquanto meu coração pulsava mais frenético do que poderia suportar. Eu caí. O glitch que me colocou ali, me tirou; mas não me levou de volta ao meu apartamento. É claro que não. Eu estava caída, com o corpo mais dolorido do que a primeira vez e diante dos meus olhos havia um novo nível de labirinto liminar: um infinito aleatório de espaços semelhantes a um bairro, sim, um bairro com casas vazias, ruas eternas, sem nenhum carro ou pessoas. O céu era avermelhado, com nuvens escuras, sem nada, nenhum ponto de luz. Embora houvesse um “campo aberto” por causa daquele céu tenebroso, a sensação claustrofóbica permanecia. Ali a tétrica morte respirava ofegante eu a ouvia e sabia que encontraria com ela a qualquer momento.
N'alcova em solinura eu m'afligia, | Terror de pesadelos: abundante! | Nesta umbra-consciência algo plangia | Em mórbido sonar arrepiante...